Maria, a bolacha de todos

Esta semana vimos diversos jornais online divulgar um estudo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, no qual foi efectuada uma análise nutricional comparativa entre dois tipos de bolacha: Maria e água e sal.

A projecção mediática do estudo foi surpreendente e certamente terá a ver com a crescente preocupação com a alimentação, a proliferação de blogs, grupos de facebook, workshops, cursos, livros de comida saúdavel, maior disponibilidade opções alternativas em alguns cafés, restaurantes…

Nota-se que a pouco e pouco a informação começa a chegar ao público em geral.

Creio que a projecção do estudo também esteja relacionada com o facto de não haver bolacha mais consensual que a Maria. A Maria vai bem com leite, vai bem com chá, com iogurte, com fruta (banana e Maria, a combinação dos deuses)…

E apesar de largamente conhecidos e difundidos os malefícios do açúcar (um dos principais ingredientes destas bolachas), das gorduras trans, de alguns E’s; as Maria são das bolachas mais recomendadas por pediatras e nutricionistas. São inclusive oferecidas nos hospitais (!).

E a mensagem que passa é que talvez a bolacha Maria não nos faça assim tão mal. Talvez seja a escolha menos má. E sim, ninguém vai morrer por comer um pacotinho de bolachas. E sim, também há bolachas piores. Mas o objectivo é não ficar doente ou ser saudável?

Em 2016, Portugal gastou 16 545 milhões de euros em despesas de saúde, o que corresponde a 8,9% do PIB e representou um aumento de 2,7% relativamente ao ano anterior. Cerca de 66,2% da despesa foi suportada pelo estado, sendo as famílias o “segundo agente financiador mais importante do sistema de saúde português”.

Segundo dados do INFARMED, em 2016 o Serviço Nacional de Saúde (SNS) gastou 1 190 milhões de euros com medicamentos em meio ambulatório. Os medicamentos com mais encagos para o SNS pertencem ao grupo terapêutico “Outros Antidiabéticos” (182 milhões), “Modificadores do eixo renina angiotensina” (100 milhões) e “Anticoagulantes” (92 milhões). 

Já em 2014 o INFARMED reportava que 24,76% do dinheiro tinha sido gasto na aquisição de medicamentos do grupo do Aparelho Cardiovascular, 22,39% em medicamentos do grupo Sistema Nervoso Central e 20,98% em fármacos do grupo Hormonas e Medicamentos usados no Tratamento das Doenças Endócrinas.

Ou seja…

  • Gastamos 8,9% do PIB em despesas de saúde, sendo o estado o principal agente financiador.

  • Os medicamentos mais onerosos para o SNS destinam-se ao tratamento da diabetes e doenças cardiovasculares.

  • A diabetes é uma doença causada por níveis elevados de glicose no sangue e ocorre quando o organismo não produz insulina, caso da diabetes tipo 1, ou não produz insulina suficiente e/ou as células tornam-se resistentes à acção desta hormona – diabetes tipo 2.

  • Da diabetes tipo 2 às doenças cardiovasculares é um passo.

  • Hoje em dia assiste-se a uma epidemia de obesidade, doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2 (até em crianças!!!) o que se deve a maus hábitos alimentares, nomeadamente elevada ingestão de açúcar (sacarose), frutose (não a natural, da fruta mas a industrial, que adoça alimentos e bebidas) e hidratos de carbono refinados.

  • E a prova disto é a despesa em medicamentos para controlar estas doenças, ao invés de se investir na  alteração de hábitos alimentares como aliás recomenda a Associação Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP): “substituir alimentos de IG (índice glicémico) elevado, por alimentos de IG baixo ou médio, pode reduzir a hiperglicemia após as refeições e assim melhorar o controlo glicémico em pessoas com diabetes tipo 1 ou tipo 2”.

  • Ora, se 70% de uma bolacha Maria é farinha de trigo e 10% açúcar, dois alimentos com elevado índice glicémico e no entanto… na creche, na escola…no hospital nos dão bolacha Maria.

Pergunto: faz sentido?

Mas vamos lá à NUTRícia…

O estudo que falei no ínicio teve como objectivos determinar “o teor de sal, gordura total e a composição em ácidos gordos de bolachas Maria e de água e sal” e realizar “uma avaliação do potencial impacto na saúde da população que as consome, tendo por base as recomendações de ingestão diária dos referidos nutrientes, bem como a porção recomendada.”

[atenção que o açúcar foi excluído desta análise, ao contrário do que afirmaram alguns jornais]

Na Introdução, lê-se que as bolachas pertencem ao grupo dos cereais, derivados e tubérculos da Roda dos Alimentos Mediterrânica. É impossível que uma afirmação destas não faça disparar os alarmes do canal de NUTRícias…Realmente as bolachas são essencialmente trigo, ou melhor, farinha de trigo refinada. E o trigo é um cereal. Mas…

Mas o que é facto é que a nossa Roda dá como exemplo de porção de “cereais, derivados e tubérculos”…a bolacha Maria. Aliás, 6 bolachas Maria = 1 porção (!)

“Lá estão vocês…Qual é o mal de comer uma bolachinha Maria de vez em quando? A Roda diz que se comermos 6 já estamos a cumprir com 1 porção do importante grupo dos cereais!”

Parece-me que o mal é relativo porque depende da nossa dieta habitual. O que é mesmo muito mau é usar um produto processado, cheio de açúcar como exemplo de uma porção do grupo de cereais, derivados e tubérculos. Não era suposto a Roda ser uma ferramenta de educação alimentar?!  Como é possível deixar passar isto? Não percebem que (ainda que passivamente) estão a “autorizar”, o seu consumo?

Que beneficia com isto? O estado? Não. 

As pessoas? Não. 

A indústria? …

Continuando…

A análise nutricional comparativa dos dois tipos de bolachas foi efectuada com base nos parâmetros (i) sal, (ii) teores de gordura total e (iii) composição em ácidos gordos.

[Não ficou clara a razão da escolha destes parâmetros específicos. Porque razão o acúçar terá ficado de fora?]

Relativamente à composição em sal, o estudo verificou que uma porção de bolachas de água e sal pode corresponder a 13% da dose diária recomendada (pela Organização Mundial de Saúde), enquanto que uma porção de bolacha Maria pode representar apenas 5%.

[zzzzz]

Quanto ao teor de gordura, o valor mínimo observado foi de 4% da dose diária de gordura recomendada (pela Roda dos Alimentos Mediterrânica) e foi encontrado numa amostra de bolacha Maria. O valor mais alto correspondeu a 12% da dose diária recomendada e pertence a uma amostra de bolacha de água e sal.

[zzzz]

Além do teor em gordura, o estudo diferenciou a qualidade da gordura e foi investigado o teor de ácidos gordos monoinsaturados, polinsaturados, saturados e trans. Foi observado que em cerca de 67% dos produtos analisados a gordura saturada foi a dominante.

[hmmm]

Então, no estudo é citado um artigo publicado pela European Food Safety Authority (EFSA) para dizer o seguinte “uma alimentação rica neste tipo de ácidos gordos [saturados] foi correlacionada com um aumento no risco de desenvolvimento de doenças cardiovasculares, entre outras doenças crónicas”.

[suspiro]

O artigo citado reflecte a opinião científica de um grupo da EFSA que se dedica a questões relacionadas com produtos dietéticos, nutrição e alergias e foi publicado em…2010 (!).

E eis o que diz o painel de espertos “There is a positive, dose-dependent relationship between the intake of a mixture of saturated fatty acids and blood low density lipoprotein (LDL) cholesterol concentrations, when compared to carbohydrates. There is also evidence from dietary intervention studies that decreasing the intakes of products rich in saturated fatty acids by replacement with products rich in n-6 polyunsaturated fatty acids (without changing total fat intake) decreased the number of cardiovascular events.”

Porquê uma fonte tão antiga? Faz sentido se não houver mais desenvolvimentos…mas houve. E entretanto, o que o painel (de 2010!) diz acerca da relação entre consumo de gordura saturada (entre outras coisas) e colesterol, doenças cardiovasculares foi refutado por estudos mais recentes.

Ou seja, é uma fonte desactualizada porque as evidências mais recentes apontam noutro sentido:

  • Não é o consumo de gordura saturada que entope as artérias.

  • Foi estabelecido por uma metanálise de ensaios clínicos randomizados (tipo de estudo com maior nível de evidência) que a substituição de gordura saturada por gorduras polinsaturadas ómega 6 (óleos vegetais) resulta numa maior mortalidade por doença cardíaca. [precisamente o contrário do que concluiu o painel de “espertos”]

  • Recentemente foi publicado o estudo PURE, um estudo epidemiológico colossal que envolveu mais de 135 mil indivíduos de 18 países que revelou que “Total fat and types of fat were not associated with cardiovascular disease, myocardial infarction, or cardiovascular disease mortality, whereas saturated fat had an inverse association with stroke. Global dietary guidelines should be reconsidered in light of these findings.”

BANG!

Onde é que eu quero chegar com tudo isto? 

O objectivo é chamar a atenção para questões que realmente importam e que se baseiam em ciência (RECENTE), que incluem por exemplo a necessidade de haver uma preocupação com o teor de açúcar, com os hidratos de carbono refinados, com os óleos vegetais, principalmente as gorduras polinsaturadas ômega 6…todos eles factores que contribuem para o aumento do risco de diabetes e doenças cardiovasculares que, como vimos, são as que nos custam mais dinheiro e saúde.

Podemos (devemos!) negociar com a indústria melhores métodos de produção, melhores ingredientes, técnicas de marketing menos agressivas (especialmente nos produtos dirigidos a crianças) e aplaudir os seus esforços. Podemos sugerir aos nossos profissionais de saúde que pressionem as instituições no sentido de se oferecer mais saúde nas cantinas das escolas, dos hospitais, dos lares. Mas tudo isto só nos fará mais saudáveis se a nossa Roda dos Alimentos reflectir a mais recente ciência, assumindo-se como uma referência mundial da Nutrição baseada em evidências.

E um bom começo seria tirar a Maria da roda!

Bora lá? 🙂

#vamostiraraMariadaroda

NOTA: quase tudo aquilo que escrevi acerca da bolacha Maria também se aplica à bolacha de água e sal.


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